“Se a União Europeia não tiver uma resposta à altura, não serve aos povos europeus”

Na sessão online "Europa, ontem e hoje", Marisa Matias e José Gusmão fizeram um balanço do trabalho realizado no primeiro ano deste mandato no Parlamento Europeu e refletiram sobre as respostas europeias à crise da covid-19.

No dia exato em que se completou um ano desde as eleições para o Parlamento Europeu, Sérgio Aires conduziu uma conversa onde as respostas da União Europeia à crise atual e o trabalho concreto dos eurodeputados bloquistas foram os motes. O sociólogo introduziu o problema de uma Europa que “continua a titubear” e quis saber também que “oportunidades para a mudança” de um projeto que “estava claramente na estrada errada”.

Em resposta, Marisa Matias começou por refletir sobre a dimensão de uma crise que, “independentemente de termos vivido crises muito graves”, tem “contornos sem precedentes”. Apesar de já conseguirmos perceber que houve um “crescimento enorme das desigualdade”, ainda “não conseguimos perceber qual o impacto" total que causará.

Apesar dessa incógnita, há algumas certezas, prosseguiu Marisa “As respostas que tivemos para as anteriores crises foram insuficientes” e “este é o momento da verdade” para a UE: “se a União Europeia não tiver uma resposta à altura, não serve aos povos europeus”.

Crise expôs a “enorme contradição no discurso europeu”

Para José Gusmão, o momento tratou de agudizar problemas e trazer à tona uma “enorme contradição no discurso europeu”. O eurodeputado apresentou dois exemplos: o da Comissão Europeia, “que andou durante muitos anos e com particular intensidade durante o programa de ajustamento da troika, mas até mais recentemente” a exigir cortes no investimento público e particularmente no Serviço Nacional de Saúde, falar agora nas carências dos cuidados de saúde. Outro exemplo de “posições um bocadinho inusitadas” é o do ex-ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, que veio dizer que “assentar uma resposta económica com base em instrumentos de dívida” seria “apoiar os países com pedras em vez de pão”.

José Gusmão concorda que os debates que agora estão a ser feitos são “debates de sobrevivência” para a União Europeia, mas introduz-lhes também uma outra dimensão política para além da económica: “se não tivermos uma resposta solidária, as consequências vão muito para lá da economia” porque está “em causa a democracia”, podendo resultar num “governo fascista em Itália” ou num “governo com a extrema-direita em Espanha”.

Para não entrar neste caminho, há que ter “perspetivas de futuro” continua Marisa Matias. Isso passa por sublinhar “que há alternativas” e repetir que “a política serve para fazer escolhas” e que as pessoas não estão condenadas a inevitabilidades. Isto apesar de, na sua génese, a União Europeia “não ter capacidade de resposta”, como o prova o facto de “uma das primeiras coisas que se fez” para combater esta crise foi suspender tratados europeus.

Investimento foi público, mas não se sabe "qual vai ser a propriedade” da futura vacina

A eurodeputada aproveitou para falar em dossiers que tem em mãos como os direitos humanos, a propósito dos quais mencionou a notícia de que uma embarcação portuguesa salvou cem pessoas para depois as devolver a um país não seguro como a Líbia. Algo “que não devia ser feito” mas que o “quadro legal europeu incentiva”, com a eliminação da possibilidade de resgate e a criminalização das organizações humanitárias que o fazem no Mediterrâneo.

Sem esquecer a resposta às alterações climáticas e um Green New Deal e do reforço e defesa dos serviços públicos, nomeadamente da centralidade do Serviço Nacional de Saúde, a dirigente bloquista destacou que a crise também mostrou que a crise também mostrou “a centralidade da investigação científica”, a necessidade de “mais financiamento e reforçar as condições de trabalho de quem faz ciência”. Nesta altura “houve reforço das verbas” e flexibilidade no financiamento de projetos mas em que “apesar do dinheiro ter sido público” não sabemos “qual vai ser a propriedade” de uma futura vacina e tratamentos para a covid-19 ou se o acesso “vai ser universal”.

Aproveitando o tema da saúde, foi então a vez de José Gusmão continuar a falar sobre a perspetiva económica. Esta crise trouxe, “ao contrário da anterior crise, um reconhecimento da importância de todas as políticas económicas públicas”. Há agora um “consenso” de que “os serviços públicos de saúde são da maior importância”, sublinhou o eurodeputado.

Por outro lado, vivemos um momento em que “países defensores da austeridade”, como a Alemanha, estão hoje a implementar respostas que são o contrário do que defenderam para outras economias ao aplicar um enorme pacote anti-cíclico.

Sistema financeiro quer aproveitar crise "para diluir o já muito fraco quadro regulatorio”

Mas esse “consenso”, prosseguiu Gusmão, não chegou à questão do fundo de cooperação, onde se partiu de uma “proposta muito boa do governo espanhol” e que tinha “potencial de dar resposta económica que era necessária” mas que foi sendo “gradualmente reduzida”.

Para além destas questões que estão na ordem do dia, o eurodeputado alerta para as “medidas que estão a ser discretamente propostas”, nomeadamente as “relacionadas com o sistema financeiro” que vê a crise “como oportunidade para diluir o já muito fraco quadro regulatorio” com o argumento do dinheiro supostamente ir acabar por “chegar à economia real”.

Também longe das atenções do momento, mas “particularmente relevante no momento da crise”, é o problema da fiscalidade. De acordo com o dirigente bloquista, uma região que não tenha mecanismos para combater o dumping fiscal” vai fazer os impostos recair cada vez mais sobre “quem vive do seu trabalho”.

Sem resposta comum, solução “tem de passar pela recuperação de áreas de soberania”

Outro problema económico que não está, para já, na agenda do dia mas que é fundamental é a forma como a crise vai afetar os direitos do trabalho. Isto porque a crise anterior redundou num “ataque sem precedentes aos direitos do trabalho”. Teme-se a possibilidade de que os mecanismos de apoio europeus venham acompanhados de “condições ruinosas”, ou seja, venham com a condicionalidade da redução deste tipo de direitos.

Para José Gusmão, os “países da coesão” têm pela frente o desafio da articulação entre si para tomar “posições de força” face aos países que querem apenas beneficiar das regras europeias como por exemplo “ter moeda mais fraca do que a que teriam” e com isso lucrar. Se não houver uma resposta comum europeia, a solução “tem de passar pela recuperação de áreas de soberania”. A pior das alternativas é “a cedência em toda a linha” destes países face às posições austeritárias.

Os desprotegidos têm de estar no centro do debate

Em seguida, Marisa Matias quis lembrar como “a crise afeta de forma mais vincada não só as pessoas mais desprotegidas mas também os setores mais desprotegidos” e que estes têm de estar “no centro do debate”. Exemplo claro desta desproteção é a precariedade, mas no campo laboral também se colocam neste momento questões sobre o teletrabalho e como este reduz salários que já são “muito baixos”. Além disso,  “sem creches públicas” o teletrabalho “acaba por ser um inferno”.

A eurodeputada trouxe a debate outros setores desprotegidos como o setor cultural e criativo e áreas e questões com menor visibilidade. Um exemplo é a forma como os problemas de habitação impossibilitam o distanciamento físico que foi preconizado para combater a pandemia.

Para além disso, há que pensar o combate às alterações climáticas e consequentemente “setores produtivos inteiros” e “uma resposta agrícola mais decente” que aposte, por exemplo, “nos circuitos curtos de produção” e na soberania alimentar. Se não forem dadas respostas “mais peso pode recair no lado dos populismos”.

Sérgio Aires fez questão de notar que a crise da covid-19 foi acompanhada de uma “invisibilidade sobre que se passa no resto do mundo”. E, “de um dia para o outro, deixou-se de falar de refugiados” e ataques a direitos humanos, “ficámos monotemáticos” porque houve dias sem informação televisiva que não fosse sobre a pandemia.

Marisa Matias acompanhou esta preocupação somando, como exemplos de invisibilidade nesta altura, as pessoas portadoras de deficiências, os cuidadores informais.

Era importante que a crise quebrasse os grandes tabus da política económica europeia

Para terminar, José Gusmão voltou à “questão central da resposta económica que tem “colocado em cima da mesa uma série de tabus”, como a mutualização da dívida, e disfunções da União Europeia como “a proibição do financiamento direto do Banco Central Europeu a Estados-membros sem intervenção do sistema financeiro” e o “financiamento monetário”. Para ele, era “importante que a crise abrisse algumas janelas” do ponto de vista destes tabus “para os quebrar”.

E insistiu, mais uma vez, na questão desregulação dos direitos do trabalho promovida pela Comissão Europeia, trazendo à baila um dos dossiers em que começou a trabalhar ainda antes da crise, o direito a desligar, que “de repente ganhou um relevo” relacionado com o que aconteceu com o teletrabalho e com a sua “fábula da conciliação do trabalho com a vida familiar” que é na verdade desregulação de direitos, a começar pelo horário de trabalho.

O dirigente bloquista também quis ponderar “o fator de distração” envolvido na crise da covid-19 que deixa os mais desprotegidos mais vulneráveis. A um nível interno mas também internacional: “muitos dos autoritários aproveitam para fazer o que já queriam como Israel na Palestina e Bolsonaro na Amazónia”. Por isso, um dos desafios da esquerda será “como responder a esta crise sem ser vítima deste potencial de distração” e como ultrapassá-la não com base na ideia de um “regresso ao passado” mas de uma “economia e sociedades diferentes”.

 

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