Vencer a crise, promover a soberania alimentar
A atual pandemia evidencia muitas limitações do nosso sistema de produção e distribuição de alimentos. A globalização destruiu a ligação das populações ao território e hoje temos muitos bens alimentares (frutas, legumes, peixe, etc.) nas prateleiras do supermercado mais próximo que poderiam ter sido produzidos localmente em muitos períodos do ano, mas que vieram do outro lado do atlântico, com enormes custos ambientais e socioeconómicos. Ao mesmo tempo temos agricultores e pescadores com dificuldades em vender e valorizar a produção local. São vítimas da compressão entre a subida dos custos de produção – com os adubos, pesticidas, sementes e plantas cada vez mais caras – e a descida dos preços de venda.
Durante décadas os Governos e as autarquias privilegiaram a abertura de grandes supermercados e centros comerciais e com isso destruíram as economias locais. Atualmente, com o mercado de bens alimentares cartelizado pelas distribuidoras, num regime de oligopólio que lhes permite praticar os preços que entenderem, não sobra qualquer capacidade de negociação para os agricultores e pescadores que lhes forneçam bens alimentares. Acabam muitas vezes a vender a sua produção abaixo do preço de custo, enquanto os consumidores pagam caro pelos mesmos produtos.
A título de exemplo, segundo o INE, entre 2010 e 2017 o custo das sementes, plantas e adubos aumentaram 34% e o preço dos produtos hortícolas pagos aos agricultores baixou 9%. Neste período, enquanto os agricultores viram as suas margens esmagadas pela subida dos custos de produção e a descida dos valores de venda, os supermercados aumentaram os preços ao consumidor em 9%. Todos os produtores conhecem a chantagem de quem domina o mercado de alimentos em Portugal.
Continuando a dar exemplos, é frequente encontrar agricultores a vender tomate abaixo do preço de custo (0,40€ em estufa) enquanto os consumidores pagam cerca de 1,5€. De forma semelhante acontece com outros produtos, em especial os de consumo em fresco e com menor capacidade de conservação, das hortaliças às frutas. Uma associação de pescadores relatava-nos recentemente que a Corvina que saiu em lota, no passado dia 17 de abril, com o valor de 4€ e o consumidor estava a pagar entre 17.50€ e 24€. O carapau manteiga, o melhor que temos, saiu a 0,8€ e 1,2€ em lota no dia 25 de Abril, enquanto o consumidor pagava entre a 9 e 10€/kg.
Perante a pandemia, um grande problema de saúde pública, todos percebemos que é mais seguro recorrer aos mercados e à produção local, se possível comprando diretamente ao agricultor/pescador e às suas organizações. Quando o fazemos damos uma grande ajuda aos mercados locais e contribuímos para uma mais justa distribuição de riqueza que nos permite a todos viver melhor.
Precisamos de políticas que promovam a soberania alimentar, garantindo uma maior autonomia das populações locais, permitindo que as mesmas decidam a forma como os seus alimentos são produzidos. A produção e o consumo de proximidade podem dar um enorme contributo para combater as alterações climáticas e impulsionar a economia. Não se trata de reduzir a diversidade da nossa alimentação ao longo do ano, mas sim de assumir uma preferência pela produção local e pela sustentabilidade ambiental e socioeconómica.
No atual cenário de crise são necessárias políticas públicas fortes, que permitam por um lado impulsionar a economia e o emprego e, por outro, acolher as aprendizagens da pandemia. Para transformar o sistema de produção e distribuição de alimentos, o Bloco de Esquerda propõe medidas de duas dimensões distintas:
Delinear e implementar Planos Regionais de Ordenamento Agroalimentar, com o objetivo de promover a soberania alimentar e a transição ecológica agroflorestal, moldando a agricultura de forma prioritária às necessidades da população local ao mesmo tempo que se combate as alterações climáticas. Desta forma, definem-se regras de implementação e gestão das áreas de produção agrícola em função das condições edafoclimáticas locais, estabelecem-se áreas máximas totais e em continuidade, assim como medidas de proteção da população e das diferentes áreas envolventes (habitação, linhas de água, vias públicas, etc.). Criam-se também as condições produtivas para promover os circuitos curtos e o abastecimento de mercados locais. A definição destes planos regionais é também essencial para suportar uma mais justa transposição da Política Agrícola Comum, promovendo uma melhor distribuição dos apoios públicos e uma maior coesão territorial.
É necessário estabelecer regras no mercado de bens alimentares e combater o abuso das cadeias de distribuição sobre agricultores e pescadores. Além da enorme pressão que estas exercem sobre os produtores para baixar os preços, atingindo níveis frequentemente abaixo dos custos de produção, é necessário impedir também a transferência das promoções em loja para os produtores, assim como a aplicação de descontos que resultam de quebras de venda e outras justificações alheias ao produtor. Para tornar as relações de mercado mais transparentes, foi criada uma Diretiva comunitária com regras mínimas, embora insuficientes, que devem ser transpostas para a realidade nacional até 2021. Mas é preciso ir mais longe e por isso o Bloco de Esquerda propõe:
1. Obrigar os contratos de abastecimento a cumprir pagamentos acima do preço de custo e acabar com o abuso da imposição de promoções e descontos aos agricultores e pescadores;
2. Fixar preços mínimos de primeira venda do pescado nas lotas acima dos custos de produção e ampliar a capacidade de armazenagem das instalações da Docapesca para proteger os pescadores da descida de preços.
3. A definição dos preços mínimos deve ser feita por uma instituição pública designada para o efeito e com o envolvimento das organizações de pescadores e agricultores.