Transportes Públicos: o calcanhar de Aquiles de Gonçalo Lopes [Newsletter: Lado Esquerdo]
1. Foi na semana passada, no Região de Leiria (RL) de 04/05, que os transportes voltaram a ser notícia de página inteira: “Transportes rodoviários arrancam, aeroporto fica para outros voos”. À parte a quimera relacionada com a “fantástica sugestão” de Monte Real se candidatar a ser parte da alternativa “Portela+1” para a solução do NAL-Novo Aeroporto de Lisboa, o título sugere que os Transportes Rodoviários (TR) vão arrancar. Deixemos a questão dos voos e concentremo-nos na questão mais terrena dos transportes.
Anunciam-se novidades nos transportes públicos na Comunidade Intermunicipal da Região de Leiria (CIMRL) = 10 municípios. Verdade ou consequência? Vejamos mais em pormenor. Comecemos pelo título: Transportes (Públicos) rodoviários no sentido lato do conceito? Nada disso. Apenas alguns transportes rodoviários. E, no entanto, existem na Região transportes públicos rodoviários de diferentes valências: intermunicipais, municipais (Mobilis, TUMG e Pombus), transportes flexíveis a pedido e transportes ferroviários (Linha do Oeste).
Todos estes transportes são públicos, mas ficam de fora do contrato de concessão assinado pela CIMRL, apenas com um operador – a Rodoviária do Lis. Ou seja: em termos de intermodalidade entre os transportes locais e regionais, rodoviários e ferroviários ou a articulação de todos num sistema tarifário comum e um mesmo passe intermodal, tal como sucede nas Áreas Metropolitana de Lisboa (AML) ou do Porto (AMP) (valor máximo de 40€/mês para um título multimodal de transporte, servindo todos os modos existentes), ZERO, nada existe, nada se diz. Apenas um queixume sintomático: “é pouco dinheiro” e “o país tem uma grande inclinação para as regiões de Lisboa e Porto”.
A estória da “inclinação” já é velha e cheira a desculpa antecipada de um mau pagador. Isto porque, na primeira oportunidade que a Região tinha de lançar uma pedrada no charco do marasmo em que funcionam os transportes públicos (TP), desenhando um novo sistema de transportes públicos intrarregional, capaz de integrar todos os modos de transportes locais e regionais rodoviários e ferroviários, em vez disso a opção da CIMRL e do Presidente da Câmara Municipal de Leiria (CML) é não fazer ondas, manter o ram-ram do negócio e esperar que o guito caia na caixa registadora de cada operador, sem falhas, até ao fim.
Claro que se tivesse havido a lembrança de fazer algo de semelhante com a AML ou a AMP, ter-se-ia de fazer, pelo menos duas coisas:
- Articular horários, frequências e cobertura de serviço de transportes em todos os concelhos da Região e entre todos os intervenientes no sistema de transportes;
- Implantar um tarifário único e comum a todos os operadores integrantes do serviço de Transportes Públicos da Região, incluindo todos os Transportes Rodoviários e Ferroviários existentes.
Aí sim, a CIMRL poderia reivindicar junto do Governo uma compensação financeira superior. Mas não. O que se passa nesta regiãozinha é a velha prática dos descontos: 50% nos Transportes rodoviários interurbanos e 30% na assinatura mensal da CP.
Ou seja, os cidadãos da Região, além de nada saberem sobre os padrões de qualidade, frequência, horários e rotas deste chamado “novo contrato de concessão” têm também a certeza de que nada de novo vai acontecer no serviço de TP. A CIMRL vai subsidiar a Rodoviária do Lis com 1,2 M€ para os próximos 4 anos para que tudo fique na mesma. Assim se desbarata 300.000€/ano para entregar à Barraqueiro (+/- 1.000€/dia útil) para fazer de conta que “arrancou” um serviço de transportes rodoviários na Região.
2. O “novo contrato de concessão” é uma autêntica falácia mesmo tendo por referência contratos de concessão do mesmo tipo que se têm feito em vários pontos do país seja para entregar a privados, seja para contratualizar com empresas públicas de transporte municipais ou intermunicipais. Neste último caso, vale a pena referir que, no âmbito do regime jurídico do serviço público de transporte de passageiros/RJSPTP (aprovado pela Lei nº 52/2015 de 9 de junho), a decisão sobre a prestação do serviço público de transportes inclui-se nas competências das autoridades de transportes: os municípios (artº 6º e 7º do RJSPTP).
Assim, enquanto autoridades locais de mobilidade, os municípios passaram a ficar obrigados a colocar em consulta e em discussão pública os termos, as condições e as obrigações de serviço público dos operadores de transporte (públicos ou privados) expressos em cadernos de encargos a serem aprovados em Assembleia Municipal (AM).
O que se depreende deste anúncio do “novo contrato” é tudo menos o cumprimento da legislação em vigor: não houve “concurso público”, não houve consulta nem discussão pública sobre o caderno de encargos e a AM de Leiria ou qualquer outra AM dos municípios integrantes da CIMRL, não conhecem nada do assunto.
É o tipo de “democracia” local que PS e PSD praticam, com esmero: a prerrogativa de tomar decisões no recato dos seus gabinetes, sem os outros partidos a chatear. A única coisa que se sabe é o valor de 1,2 M€ que a CIMRL (isto é, o governo, via PART) irá entregar à Rodoviária do Lis como compensação financeira pelos “descontos”. Pelos vistos, não terá sido fácil tornear a Lei pois este “ajuste direto” vergonhoso demorou três anos a obter um visto do Tribunal de Contas… O Sr. Presidente da câmara, Gonçalo Lopes, que também é presidente da CIMRL, bem pode tentar varrer para debaixo do tapete a sua evidente “inclinação para favorecer o negócio”, entregando a privados aquilo que devia ser de todos e discutido por todos – o serviço de TP em Leiria e nos restantes municípios da Região.
Há muito que o Bloco tem chamado a atenção que o sistema de concessão a privados é um caminho impossível para alcançar um sistema de TP acessível a toda a população, com a qualidade que as pessoas nunca tiveram, mas que mereciam ter. Sempre dissemos, e mantemos, que TP com qualidade só acontecerão se o município deixar de olhar para os TP como uma oportunidade de negócio para alguns, mas sim como um caminho mais seguro para cumprir as obrigações de serviço público que a Constituição da República estabelece no capítulo dos direitos à mobilidade.
Por isso, a exemplo do que acontece nas principais cidades e AML e AMP, onde pontuam fortes empresas públicas de transportes, também aqui na região de Leiria, se deveria criar uma empresa pública intermunicipal com base num sistema de parceria com os municípios circunvizinhos (Batalha, Porto de Mós, Marinha Grande e Pombal), tendo em vista atingir alguma dimensão e economias de escala para produzir transporte com padrões de qualidade e de eficiência, em adequada articulação com o transporte ferroviário da Linha do Oeste. Seriam os tais operadores internos de transporte que a própria Lei nº 52/2015 prevê que possam acontecer desde que resulte da vontade das respetivas autoridades locais e regionais (artº 16º do RJSPTP).
3. A inclinação para o negócio por parte desta câmara de Leiria dirigida absolutissimamente pelo PS e pelo seu presidente, Gonçalo Lopes, não se vê apenas nesta borla financeira de 1,2 M€ para o grupo Barraqueiro nos próximos 4 anos sem que se saiba quais os compromissos que a Rodoviária do Lis assumirá para a melhorar da qualidade e cobertura do seu serviço. Também surge em “novos projetos” de transporte, catalogados como “mobilidade limpa”, como será o caso de um MetroBus (MB) entre Leiria- Marinha Grande (MG).
Um excelente trabalho do jornalista Carlos S. Almeida no RL de 13/04 permite perspetivar alguns contornos do novo “negócio”. Assim, segundo o jornal, o projeto do MB, que está a ser desenvolvido pela CIMRL, pela mão do seu Presidente, Gonçalo Lopes, é “um projeto-piloto de transporte coletivo sustentável – Leiria.H2.Mobilis – com recurso a autocarros movidos a hidrogénio. É alternativa enquanto transporte coletivo (…) e prevê um investimento de 2,5 M€ através de uma candidatura através do PRR”.
O artigo levanta diversas dúvidas e reticências muito pertinentes, que subscrevemos, sobre um projeto que tem várias zonas brancas o que retira muita credibilidade e consistência à dita “alternativa”. Por exemplo, o traçado ainda é uma incógnita e adivinha-se uma operação impossível pôr o MB a circular na EN242 - a menos que se construa uma variante para uma estrada já bastante congestionada. Mas isso seria promover a poluição automóvel e não combatê-la, sr. Presidente!
Outra das zonas brancas tem a ver com a natureza de um projeto apresentado como “alternativa” à ligação ferroviária Leiria-MG. Tal chancela só pode ser mais um embuste de Gonçalo Lopes. Porquê?
Veja-se a questão da “alternativa” à ferrovia. Toda a gente sabe que está em curso um investimento de eletrificação e modernização da Linha do Oeste, com conclusão anunciada em 2026 (ano de eleições…). É certo que esse investimento virá com 6 anos de atraso e que ficará aquém do que seria necessário. Mas quando concluído, o diesel será definitivamente abandonado e a pegada ecológica na linha do Oeste será reduzida a valores próximos de zero. Nestas circunstâncias falar-se que o MB seria uma alternativa mais sustentável que a ligação ferroviária é tentar enganar as pessoas em nome de uma “alternativa” que está longe de ser mais ecológica que uma ligação ferroviária. Até porque, quando concluída, a ligação passará a ter características funcionais e técnicas de fiabilidade, segurança e eficiência energética bastante superiores à anunciada no MB.
A outra zona branca é que o tal MB seria sempre e só uma linha isolada, teria um tarifário específico e onde os destinos para lá do fim da linha obrigariam sempre à mudança de transporte. Por sua vez, a ligação ferroviária Leiria-MG, estando integrada numa rede, permite aos viajantes prosseguir viagem sem qualquer mudança de modo.
No caso específico da estação ferroviária de Leiria, afigura-se ainda outra vantagem inigualável: é que a nova Linha de Alta Velocidade Porto-Lisboa terá paragem em Leiria, precisamente na atual Estação de Leiria-Barosa, o que potenciará o modo ferroviário como a verdadeira alternativa de futuro, não só em relação a um fantasioso MB, mas sim face ao transporte rodoviário, o qual, infelizmente, por muitas décadas mais, ainda continuará a ser o fator de maior produção de emissões de CO2 em Portugal.
Por fim, a zona branca do guito. Diz-se que o MB é um projeto-piloto apontado para custar 2,5 M€, supostamente vindos do PRR. Do ponto de vista da análise custo/benefício (ACB) ainda estamos na infância das contas. Por exemplo, desconhece-se o tempo de vida útil considerado para um projeto desta natureza. Mas os números invocados – 2,5 M€ - permitem desconfiar.
Veja-se o caso do MB de Coimbra: o valor total do projeto para 40 veículos é de 68 Milhões de € (valores sem IVA), onde se inclui 40 M€ para a compra de 40mveículos, 8 M€ para a construção de oficinas e 19 M€ para o carregamento de baterias, com um período de vida útil de 15 anos. Nestes termos, cada veículo custa à volta de 1,7M€ para 15 anos. A estes valores acresce o IVA (+/- 15M€). Logo, o custo total do MB de Coimbra, aprovado na RCM 14/05/2021, será de 84M€, e por veículo, 2,1 M€.
Ficamos perplexos como é que se fala em apenas 2,5 M€ para o suposto “projeto do MB de Leiria”! Só se estivermos a falar de UM veículo. Estamos a brincar…
Como se referiu no caso do MB de Coimbra, a vida útil do projeto é de 15 anos. Ao fim de 15 anos haverá que renovar integralmente a frota: mais 60M€. Logo, em 30 anos, o custo total do MB de Coimbra, atingirá 144 M€. E se for em 45 anos, 200 M€….
Em absoluto contraste com estes valores, a vida útil de um comboio anda à volta de 50 anos; na infraestrutura, 100 anos (pelo menos). O custo da eletrificação da Linha do Oeste entre Leiria-MG (10 km) andará à volta de 18 M€, utilizando o valor do custo/km do investimento no troço entre Meleças/Caldas. Por aqui se vê como entra pelos olhos adentro de qualquer pessoa que nos andam a tomar por tolos. Mas nem oferecem os bolos…
Em conclusão, esta dita “alternativa” de um putativo MB ecológico parece ser mais uma “escorregadela” de Gonçalo Lopes mais virado para o negócio do que para uma solução de mobilidade sustentável nos transportes públicos em Leiria e Região que urge promover.
Texto: Heitor de Sousa