Escolas em Luta: É bem possível que tenham acordado a fera [Newsletter: Lado Esquerdo]
Começou em dezembro e ainda não parou. Milhares de profissionais da Educação em protesto quase permanente, encerraram escolas, ocuparam os noticiários e as ruas por vezes de forma massiva. O governo reagiu como o fizeram todos os seus antecessores: tentou o medo e a mentira, fingiu dialogar condicionando os temas a debater e arrastando o processo de modo a provocar a desmobilização (sim, porque os dias de greve correspondem a perda salarial), por último, enterrou-se numa aplicação de uns ditos “serviços mínimos” obviamente ilegais que o único efeito que produziram foi radicalizar ainda mais o descontentamento. Neste momento já foram entregues pré-avisos de greve até 31 de março e o próprio Presidente da República sentiu necessidade de “deitar alguma água na fervura”, apoiando a recuperação do tempo de serviço de forma faseada (a tal história dos 6 anos, 6 meses e 23 dias que foram ignorados em parte do território nacional para efeitos de progressão na carreira).
Que houve de novo em tudo isto? A Educação sempre foi área de conflito, aquele setor dos serviços públicos em que, devido ao número de profissionais, os diversos governos tentaram emagrecer a parcela que lhe estava destinada nos orçamentos. Isso foi abrindo sucessivas brechas de descontentamento e alterando o funcionamento das escolas, reduzindo a interferência possível dos seus profissionais nas decisões lá tomadas. Formação inicial, contratação, falta de pessoal, progressão salarial, contagem do tempo de serviço, estabilidade profissional (e até familiar), colocações, condições de trabalho, avaliação de desempenho, gestão das escolas- em tudo isto a vida profissional e pessoal dos docentes foi sendo afetada, sempre com o único objetivo de garantir as escolas abertas com o custo mínimo. Foi durante os governos Sócrates e com a ministra Maria de Lurdes Rodrigues que se viveu um momento alto de contestação, a cuja derrota se seguiu um longo período de desmoralização. Claro que a enorme quantidade de estruturas sindicais dos professores contribuiu para essa desmobilização e até para a redução do número de profissionais sindicalizados: “só nos levam dinheiro e nada fazem”!
Foi precisamente neste último ponto que se verificou a grande novidade do processo que estamos a viver. Tendo começado nas escolas, debatendo entre si ideias e propostas de iniciativas, houve uma estrutura sindical - o Sindicato de Todos os Profissionais da Educação - que lhes deu cobertura e organização. Criaram-se comissões de greve que representam os colegas e defendem propostas sobre caminho a seguir, para além de, através dos seus contactos, divulgarem o que cada uma se propunha fazer. O peso desta mobilização foi tal que obrigou as restantes estruturas sindicais e, sobretudo, as duas principais federações (FENPROF e FNE) a apanhar o “comboio”, garantindo unidade no processo negocial.
Por outro lado, uma cuidada explicação das reivindicações, conquistou não só a compreensão, mas até o apoio de muitos pais, alguns dos quais, através das suas associações, tomaram posição de solidariedade com este processo de luta.
Os próximos tempos vão ser decisivos. Senhor da ordem-de-trabalhos das negociações, o ministro impôs o tema da “burocracia” nas reuniões que se seguem. Ele sabe que é um tema delicado, demorado e até fraturante porque muito relacionado com a função social que cada um atribui à Escola. Vai, pois, tentar arrastar o processo negocial até a momentos de menor impacto público (o final das aulas, já que os exames estão garantidos, esses sim, por serviços mínimos). Mas talvez tenha o azar (e nós, a sorte) de dinamizar nas escolas um debate aprofundado sobre a Escola que temos e a perversidade do seu serviço no conjunto da sociedade. David Justino (militante do PSD e ministro da Educação do governo Durão Barroso) foi obrigado a reconhecer no tempo em que presidiu ao Conselho Nacional de Educação que “(…) a ideia de uma ‘escola a tempo inteiro’ pretende responder, antes de mais, ao ‘tempo da atividade’ dos pais (…)” (1). Não, a escola não pode servir para abusos nas relações de trabalho e para mascarar o mau funcionamento de serviços e a desarticulação entre eles. É bem possível que tenham acordado a “fera”.
(1) Organização Escolar – O Tempo, CNE, 2017
Texto: Gil