Entrevista: Maria Manuel Rola [Newsletter: Lado Esquerdo]

Numa entrevista à Newsletter ‘Lado Esquerdo’, Maria Manuel Rola argumenta que o problema da habitação "continuará a existir e de forma cada vez mais aguda”, referindo que tudo continua por fazer desde o 25 de abril.

Foi deputada do Bloco de Esquerda, tendo integrado a Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Poder Local e Habitação, onde se bateu por matérias como combate à especulação imobiliária e pela aprovação da nova Lei de Bases da Habitação. Atualmente, como dirigente nacional do Bloco de Esquerda, Maria continua a lutar ativamente contra a precaridade. Em entrevista ao ‘Lado Esquerdo’ sublinha a importância de uma resposta robusta a nível municipal, e até mesmo, de freguesia para combater este problema. Argumentando que as políticas que foram seguidas até agora, não só não apresentam uma solução para a crise na habitação como ainda a agrava.

O governo PS anunciou no início do ano um grande pacote sobre a habitação supostamente para resolver a crise da habitação especialmente junto das famílias mais carenciadas. Anunciou, entre outras coisas, a construção de 26.000 casas a serem incluídas no parque habitacional público até 2026. O que se pode esperar desse anúncio? É para valer ou é apenas “para inglês ver” como diz o ditado?

O Governo do PS tem vindo a anunciar medidas para responder à crise habitacional desde 2017. Começaram por se comprometer com 170.000 casas, que levaria a um parque público de 5%, depois passaram a falar quase apenas no Primeiro Direito que, com um levantamento muito pouco rigoroso, identificava 26.000 agregados em situação habitacional indigna e da habitação acessível em que falavam em 25.000 casas. Ora, a necessidade, só do Primeiro Direito, já se sabe que pode chegar perto de 100.000. Desde então, o problema da habitação agudizou-se, com um aumento de preços escandaloso, a pandemia e a guerra. O pacote do início do ano, fora os temas mais fraturantes, que terão pouca eficácia, representa apenas mais benefícios fiscais. Não existem medidas que reduzam as rendas, pelo contrário, estes tipos de medidas tendem a aumentá-las. Por isso, sim, o problema continuará a existir e de forma cada vez mais aguda.

“O pacote do início do ano, fora os temas mais fraturantes, que terão pouca eficácia, representa apenas mais benefícios fiscais. Não existem medidas que reduzam as rendas, pelo contrário, estes tipos de medidas tendem a aumentá-las. Por isso, sim, o problema continuará a existir e de forma cada vez mais aguda.”

 

O Censos de 2021 aponta para a existência de cerca de 700.000 casas vazias no país. Uma das razões porque esse vazio existe é porque ninguém lhes consegue chegar, seja por serem muito caras para serem compradas, seja porque é visível uma ação especulativa dos proprietários das casas no sentido do aumento das rendas. Que medidas poderão ser tomadas no sentido de garantir o direito à habitação nos termos da Constituição em vigor?

Ora, a obrigatoriedade de arrendar, uma das questões polémicas do pacote “Mais Habitação” é uma das hipóteses, que muitos países já aplicam. Ainda agora estive na Bélgica, e lá não existe habitação devoluta. Pode-se fazer através de uma penalização forte nos impostos ou mesmo através da obrigatoriedade de arrendamento. Existem mais. Existe também a expropriação por interesse público, por exemplo, a posse administrativa e outras medidas da política de solos usadas justificadamente por interesse público e sempre com pagamento justo, como dispõe a constituição. Se a habitação é uma urgência nacional, também esses mecanismos, salvaguardados pelo interesse público da sociedade portuguesa, poderiam atuar no sentido de garantir que habitação devoluta que não está a responder a uma função social passe a fazê-lo. Temos muita gente a precisar de casa e muitas casas a precisar de gente. Um estado de direito como o nosso, não pode compactuar com este abandono.

“Se a habitação é uma urgência nacional, também esses mecanismos, salvaguardados pelo interesse público da sociedade portuguesa, poderiam atuar no sentido de garantir que habitação devoluta que não está a responder a uma função social passe a fazê-lo. Temos muita gente a precisar de casa e muitas casas a precisar de gente, um estado de direito como o nosso, não pode compactuar com este abandono.”

 

Sendo o direito à habitação uma premissa constitucional, à semelhança da Saúde e da Educação, o que ficou por fazer nesta área desde o 25 de Abril?

Tudo. O parque público de habitação, instrumentos de monitorização das políticas, a formalização de contratos de arrendamento, a proteção estável de inquilinos, como foi feito, por exemplo, com a lei geral do trabalho. A resposta pós-25 de abril foi seguir a tendência internacional iniciada por Margaret Thatcher de liberalização e privatização: para alavancar a economia na banca e na construção, o país gastou o orçamento para a habitação em crédito bonificado. Não construiu parque habitacional, manteve o congelamento das rendas e seguiu a tendência de privatizar o pouco parque que, na maior parte das situações, foi construído ainda antes do 25 de abril. Temos neste momento muito edificado abandonado porque, em muitas situações, as pessoas não tinham condições para a manutenção das casas que adquiriram por valores mais favoráveis e com ajuda do orçamento de estado. E mais uma vez o resultado: muita casa sem gente, muita gente sem casa.

“A resposta pós-25 de abril foi seguir a tendência internacional iniciada por Margaret Thatcher de liberalização e privatização: para alavancar a economia na banca e na construção, o país gastou o orçamento para a habitação em crédito bonificado. (…) E mais uma vez o resultado: muita casa sem gente, muita gente sem casa.”

 

Qual a razão da falta de uma oferta robusta de habitação pública em comparação com outros países europeus? Como deveria ser estruturada uma solução de habitação social integrada? Faz sentido a existência, por hipótese, de um “Serviço Nacional de Habitação”?

No início do século passado e pós as Grandes Guerras, muitos países construíram habitação de forma massiva. Muitos deles, Inglaterra, por exemplo, mais tarde privatizaram o parque habitacional com políticas promovidas por Margaret Thatcher, como o Right to Buy. Isto nos anos 70. Existem, por outro lado, países que nunca venderam o parque habitacional, como é o caso de Áustria (Viena), onde o edificado municipal alberga cerca de metade da população, onde existe regulação do valor das rendas/m2, onde os contratos são estáveis. Em Paris, por exemplo, os contratos são por tempo indeterminado e só razões de grande relevância - como a necessidade de casa para si ou familiares - podem levar à quebra do contrato.
Portugal não teve nunca Parque Público de habitação, sempre respondeu com tugúrios, fossem as ilhas proletárias, os subalugas, as villas em Lisboa. Ora, já na fase final da ditadura, começou a existir alguma promoção para responder ao problema da habitação. No Porto foram cerca de 9.000 casas (neste momento a cidade tem cerca de 13.000). Houve mais alguma construção depois com o Programa Especial de Realojamento nos anos 90. Mas quer as primeiras, quer as segundas, guetizaram as populações pobres. Depois a lei, que era bastante estrita, passou a ser totalmente liberal num caminho iniciado por Cavaco Silva nos anos 80 e 90. Enfim, tudo isto tem de ser alterado, mas o mais relevante é o sentimento social e a perceção da importância do Direito à Habitação em confronto com o Direito à Propriedade, e isso está a mudar, temos cada vez menos pessoas a aceder à propriedade e que querem uma resposta de habitação pública e de arrendamento privado que possam pagar. Sabem que o merecem, que é básico para que possam viver, que não é vergonha nenhuma não ser proprietário ou viver em habitação pública. E que lutam por isso. As manifestações recentes são a demonstração dessa vontade, o programa do Governo foi uma ilusão para tentar refrear esse ímpeto de manifestação, ninguém acreditou e saiu à rua.
O nome em si talvez não tenha de ser Serviço Nacional, até porque existe uma resposta municipal que é muito relevante, mas a Habitação deveria ser estruturada quase como a Segurança Social com uma espinha do estado central relevante, com serviços desconcentrados e territorializados. Mas, para além disso, com uma capacidade de resposta municipal e até ao nível da freguesia mais robusta, em que todos os níveis de poder respondem com edificado, com apoio na manutenção das habitações, com apoio urgente e digno no caso de perda de habitação e também com apoio jurídico e sem preconceito. Deveriam existir brigadas municipais robustas, e nos municípios que não têm essa capacidade, apoio do Estado para tal. Por fim, teria de existir uma ação proativa de fiscalização das condições de habitabilidade e dos contratos para nivelação do poder relativo das partes do contrato e para não se chegar ao estado de abandono de hoje. É preciso intervenção e coragem política, o oposto do que existiu até hoje.

“Depois a lei, que era bastante estrita, passou a ser totalmente liberal num caminho iniciado por Cavaco Silva nos anos 80 e 90. Enfim, tudo isto tem de ser alterado, mas o mais relevante é o sentimento social e a perceção da importância do Direito à Habitação em confronto com o Direito à Propriedade, e isso está a mudar, temos cada vez menos pessoas a aceder à propriedade e que querem uma resposta de habitação pública e de arrendamento privado que possam pagar. Sabem que o merecem, que é básico para que possam viver, que não é vergonha nenhuma não ser proprietário ou viver em habitação pública.”

“A Habitação deveria ser estruturada quase como a Segurança Social com uma espinha do estado central relevante, com serviços desconcentrados e territorializados. Mas, para além disso, com uma capacidade de resposta municipal e até ao nível da freguesia mais robusta, em que todos os níveis de poder respondem com edificado, com apoio na manutenção das habitações, com apoio urgente e digno no caso de perda de habitação e também com apoio jurídico e sem preconceito.”